Um homem de 59 anos, residente em nosso país desde seus 12
anos, veio trazido a um dos ambulatórios do Hospital Geral da Santa Casa
de Misericórdia por sua esposa, com quem está casado, e sem filhos, há
36 anos. O motivo do atendimento foi uma dificuldade em deambular
acompanhada de dispnéia, ambos progressivos e de início há mais ou menos
3 anos. O exame de eletroneuromiografia foi sugestivo de
doença do neurônio motor, e também foi encontrado um nódulo em um dos pulmões.
Feita a hipótese diagnóstica de esclerose
lateral amiotrófica
paraneoplásica, o paciente foi imediatamente internado.
Já nesta primeira consulta a médica assistente notou o
comportamento aflito da esposa do paciente. Ela se antecipava a seu
marido dando todas as informações, praticamente não o deixando falar.
Embora tendo aceitado a internação do seu marido, dele não conseguia
separar-se para nada. Ficou o tempo todo com ele na enfermaria
controlando e tentando participar até do trabalho da enfermagem, o que
acabou criando uma certa antipatia da equipe para com ela. O quadro de
dispnéia do paciente se agravou e foi necessário tranferí-lo para o
CTI, onde as visitas são firmemente controladas. A esposa desesperou-se
e passou a usar de todos os meios a seu alcance (sedução com presentes,
manipulação de informações, choro e etc.) para ficar mais tempo com o
marido. Quando não conseguia seu intento, passava a ameaçar a equipe com
denúncias na mídia. A equipe fez algumas tentativas de abordagem da
esposa, todas no sentido de oferecer tratamento psicológico e
psiquiátrico para ajudá-la a aceitar a situação do seu marido. Todas
fracassaram. Ela não conseguia escutar e falava sem parar sobre como
apenas ela sabia cuidar do seu marido, que ele deveria ir para casa, que
ela morrerá se ele vier a falecer e que ela conhecia pessoas que
acabaram se suicidando nesta situação. Era patente seu estado
desesperador, mas alguns membros da equipe desconfiavam que, no fundo,
ela queria que o marido morresse.
Por outro lado, o paciente nunca mostrou nenhuma aflição com
seu estado, que sabia ser muito grave e que vinha piorando. Sua única
preocupação era a sua esposa. Internado no CTI, o tempo todo lúcido,
traqueostomizado e entubado, pedia apenas para cuidarem dela, “que
estava muito nervosa”.
Discutiu-se, inicialmente, a impressão, que acabou
contaminando quase toda a equipe, de que todo aquele cuidado excessivo
da esposa para com o marido era patológico e movido por
desejos
agressivos inconscientes para com ele, portanto patogênico para ele. A
equipe compreendeu inicialmente o comportamento da esposa como sendo
fruto de uma formação
reativa defensiva em relação aos seus próprios desejos agressivos
dirigidos ao marido. Em suma, a esposa foi vista inicialmente como um
elemento patogênico, o que costuma engendrar comportamentos rejeitadores
por parte da equipe.
Aprofundando-se a discussão, evidenciou-se a intensa união psicológica
do casal, de tal forma que estava sendo a esposa, totalmente
identificada com seu marido, que estava passando pela angústia de morte.
Por isso o paciente não apresentava nenhum sinal de sofrimento mental.
Foi a esposa que inicialmente
negou a doença do marido e depois começou
a oscilar entre negociar de todas as formas a vida do marido e se
revoltar com a possível morte dele, etapas descritas por Elizabeth
Klüber-Ross em seu livro Sobre a Morte e o Morrer. Portanto,
naquele momento, era fundamental entender-se melhor o comportamento da
esposa: aquilo que parecia, como já dito, fruto de agressividade
reprimida e transformada no oposto era, de fato, a expressão do
desespero diante da ameaça de perda do marido, com quem estava
inconscientemente identificada.
Feito o diagnóstico psicodinâmico, como lidar com esta
situação de identificação maciça numa situação hospitalar, e que já
estava interferindo no tratamento do paciente, foi discutido na parte
final da reunião.
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