Uma senhora de 65
anos, viúva, com três filhos adultos, internou-se no Hospital Geral da
Santa Casa de Misericórdia para realizar uma cirurgia de retirada de um
tumor cerebral. Desde o primeiro momento em que foi abordada por um dos
membros da unidade de Psicologia Médica do C.M.P. associada à enfermaria,
queixou-se de estar abandonada por todos: pelos filhos, demais
familiares e equipe médica. Mostrou-se bastante irritada com o fato de
estar internada e desconfiava muito das intenções dos médicos para com
ela. Achava que não estavam interessados em cuidar dela e sim em ter
encontros sexuais, até mesmo bacanais na sala de reuniões. Temia ser
vítima de abuso sexual à noite e na cirurgia quando sob efeito da
anestesia geral, e, por isso, dizia não dormir e não querer operar.
Em muitos momentos expressou idéias suicidas e, em outros,
falou em abandonar o tratamento, chegando mesmo, em determinado dia, a
vestir-se para retirar-se do hospital. Durante praticamente todo o
primeiro mês de internação ficava aguardando um familiar vir buscá-la. A
todo custo queria voltar para casa.
A não desistência de seu terapeuta, seu interesse em entender o que a
paciente estava passando que tanto a angustiava, a ponto de preferir não
se tratar (e morrer), propiciou uma mudança no estado de humor da
paciente. Deixando de estar irritada e
agressiva, postura defensiva que
geralmente tem o poder de induzir comportamentos e atitudes rejeitadoras
por parte da equipe, a paciente revelou-se intensamente deprimida e
desesperançada. Concomitantemente passou a falar de si, de sua história
de vida e de como esta se relacionava com sua doença. Achava que seu
tumor era uma conseqüência direta dos maus tratos recebidos de seu pai
em sua infância. Além dos relatos de violência física, fez várias
alusões metafóricas de ter sido vítima de abuso sexual pelo pai e/ou por
um compadre deste. E daí vinha sua aversão ao hospital e aos médicos:
emocionalmente, tudo ali lhe lembrava sua casa da infância. A
experiência de sentir-se presa e vítima das pessoas que dela deveriam
cuidar, vivida na infância, estava sendo revivida agora. A cena
traumática infantil coloria completa e inconscientemente a situação
atual engendrando o temor e a desconfiança de estar sendo vítima
(novamente) de maus tratos e abuso, e induzindo-a a afastar-se de todos,
familiares e médicos, criando o sentimento de abandono. Este é um
exemplo vivo do que Freud
chamou de transferência,
fenômeno mental movido pela compulsão à repetição.
Discutiu-se, inicialmente, o entrelaçamento dos três temas
trazidos pela paciente: o tema do abandono, o do abuso sexual e o da
doença. A discussão caminhou para o desejo de morrer (expresso através
de idéias suicidas, de ser portadora de uma maldição, de querer
abandonar o tratamento, do tom claramente de despedida de uma das
últimas consultas) e a relação deste desejo com a conhecida
síndrome de
eutanásia. E, de fato, a cirurgia transcorreu sem problemas, mas a
paciente contraiu pneumonia e veio a falecer no pós-operatório.
Em seguida, o tema do abuso sexual foi abordado.
Diferenciou-se a forma de apresentação psicológica de um fato traumático
realmente ocorrido das fantasias provenientes de desejos sexuais infantis, por vezes intensamente vividas, ressaltando-se que, embora
diferentes, as duas situações são realidades no mundo mental e como tal
devem ser consideradas na terapia. Finalmente, discutiu-se a maneira
como a Psicologia Médica lida com o tema do abuso sexual.
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